terça-feira, 28 de agosto de 2012

Inauguração




Caros amigos, letrilha é um espaço que encontrei para publicar meus textos, pensamentos. Como em uma trilha, colocarei as letrinhas em ordem ou desordenadamente e espero formar palavras e ideias de interesse. Nesta "edição", inicio com um miniconto que, quem sabe, poderá virar uma coisa maior...


Nicolau...

...um menino, que sabia demais


                        1º movimento



Chove muito...

Nicolau sabe que nestes dias não pode sair. Um descuido, já era.

Ele é o que se pode chamar de redondo. Rosto, olhos, coxas, orelhas, bumbum, tudo redondo.

É filho único, sua mãe, distraída, deixou o tempo passar; naquela altura, achava que não conseguiria mais. “Jamais”, dizia. “Nunca, imagina...”, de repente, surge Nicolau, redondo, macio, fofo, quase de pelúcia... quase de verdade.

Em seus braços, eles se aqueciam. Seus olhos se encontravam, se perdiam, se achavam um no outro... Que encanto era esse? Quando ele ouvia seus passos, seu coraçãozinho disparava, tinha pressa, sentia frio, depois quentinho...
Seu pai... bom, isso é uma outra história. Quando Nicolau nasceu, seu pai, envolvido em enredos e personagens, se perdeu em uma de suas narrativas... eram tantas vírgulas, que sua mãe, depois de inúmeros travessões, decidiu pôr um ponto final naquela história... será?
Daí a adoração do menino por jogos de palavras. Ele acreditava poder resgatar seu pai em uma daquelas linhas... Para Nicolau, é uma questão de ritmo, pontuação.

Certa vez, acordou com a sensação de outra época. Tudo remetia ao passado: a luz, os barulhos da rua, o perfume... bastava fechar os olhos ou mesmo abertos, voltava alguns anos. Até hoje não sabe por que isso acontece, só em certos dias, em geral quando está longe, descolado... A sensação é boa e angustiante. É o querer mergulhar no tempo e se deixar levar.

Já é tarde. E o sono não chega. A cama, o travesseiro, os lençóis, a luz apagada, silêncio total, todos estão prontos, e nada... Nicolau, sem perceber, se vê a brincar de Deus. Seu coração dispara e imagens distantes retornam. Tudo volta ao que era, do jeito que nunca aconteceu. Sua mãe o abraça com força, beija-o... seu pai diz que tudo acabará bem, que todos serão felizes pra sempre... bolo de chocolate, canja de galinha, doce de leite... O nunca e o pra sempre juntos...

                            2º movimento
- Mamãe, você está bem?
- A alma da mamãe tá tomando banho...
- Você usa sabão?
- Não, meu querido, uso as lembranças. 
                 

Naquela manhã, Nicolau estava especialmente curioso. Tudo era motivo de indagação. Por que o céu é em cima? Por que hoje não é sábado? Por que estou chorando e não estou triste? Acabei de comer, mas ainda estou com fome? Pra onde foi todo o mundo?

Com seu ouvido aguçado, recebia respostas de perguntas que nem imaginava poder fazer. Às vezes se achava um super-herói... enxergava a distância... Pensava que podia ter vários bolsinhos para colocar tudo aquilo que chegava até ele. Depois, mais tarde, com calma, organizaria cada pergunta junto de cada resposta. Desse modo entenderia tudo, e nada ficaria sem solução, cutucando... 

O problema é que quando a curiosidade fazia cócegas, era prenúncio de confusão... Sábado, de manhãzinha... todos ocupados, de um lado pro outro... Nicolau, na sala, ouviu alguém sussurrando, contando um segredo. Paradinho, percebeu que era um código, alguém marcando encontro secreto, bem escondido, bem longe dali, mas que de repente ficou tão perto...   

Ele podia sentir o que ainda não estava preparado pra entender... prendeu a respiração e gritou: estátua.

                                                3º movimento

- O almoço está na mesa... a comida vai esfriar...
- Já vou - respondeu.

Nicolau sabia que não podia deixar transparecer nada, nem uma gotinha de suor, nada. A partir dali, acabara de ingressar em uma missão secretíssima... E o pior: como um agente duplo. Precisava ser discreto e estabanado. Sério, mas brincalhão. Pensativo e falador. Atento e distraído... As coisas estavam ficando complicadas.

Os dias passaram... Sem informações, contatos, nada. Um silêncio meio véspera de desgraça... por coincidência, véspera de Natal. As crianças no colégio falavam sobre seus presentes, e o pequeno morria de medo de seu futuro, logo depois daquela noite... depois daquela maldita informação... maldita hora em que estava ali sem querer estar. Não adiantava fugir, foi convocado... o trabalho era sério: ou aceitava ou aceitava. Tinha de cumprir sua missão. Resolveu relaxar. Quando ouviu passos, cada vez mais próximos, mais íntimos, chegou a fechar os olhinhos e tapar os ouvidos. E pensou: “se não ouço e não vejo, não existe”. Infelizmente, quando se trata de missão secreta, esses truques não funcionam.

- Ouça com bastante atenção. Eu te amo, vou sentir muitas saudades, mas preciso ir embora. Você entendeu? Quer que eu repita? Estou com pressa, mas posso esclarecer qualquer dúvida. Este é o momento dos detalhes... Se quiser anotar alguma coisa, faça agora. Não sei quando nos veremos nem sei se... Você entendeu?

Nicolau ficou tão atordoado que não conseguia falar... “que missão é essa, meu Deus. Será que vou dar conta?”. Tinha que dar, pois, quando percebeu, não havia mais ninguém ao seu lado.

No dia seguinte, os objetos, as pessoas, tudo havia trocado de lugar.