Caros amigos, letrilha é um espaço que encontrei para publicar meus textos, pensamentos. Como em uma trilha, colocarei as letrinhas em ordem ou desordenadamente e espero formar palavras e ideias de interesse. Nesta "edição", inicio com um miniconto que, quem sabe, poderá virar uma coisa maior...
Nicolau...
...um menino, que sabia demais
1º movimento
Chove muito...
Nicolau sabe que nestes dias não pode sair.
Um descuido, já era.
Ele é o que se pode chamar de redondo. Rosto,
olhos, coxas, orelhas, bumbum, tudo redondo.
É filho único, sua mãe, distraída,
deixou o tempo passar; naquela altura, achava que não conseguiria mais.
“Jamais”, dizia. “Nunca, imagina...”, de repente, surge Nicolau, redondo,
macio, fofo, quase de pelúcia... quase de verdade.
Em seus braços, eles se aqueciam. Seus olhos
se encontravam, se perdiam, se achavam um no outro... Que encanto era esse?
Quando ele ouvia seus passos, seu coraçãozinho disparava, tinha pressa, sentia
frio, depois quentinho...
Seu pai... bom, isso é uma outra história.
Quando Nicolau nasceu, seu pai, envolvido em enredos e personagens, se perdeu
em uma de suas narrativas... eram tantas vírgulas, que sua mãe, depois de inúmeros
travessões, decidiu pôr um ponto final naquela história... será?
Daí a adoração do menino por jogos de
palavras. Ele acreditava poder resgatar seu pai em uma daquelas linhas... Para
Nicolau, é uma questão de ritmo, pontuação.
Certa vez, acordou com a sensação de outra
época. Tudo remetia ao passado: a luz, os barulhos da rua, o perfume... bastava
fechar os olhos ou mesmo abertos, voltava alguns anos. Até hoje não sabe por
que isso acontece, só em certos dias, em geral quando está longe, descolado...
A sensação é boa e angustiante. É o querer mergulhar no tempo e se deixar
levar.
Já é tarde. E o sono não chega. A cama, o
travesseiro, os lençóis, a luz apagada, silêncio total, todos estão prontos, e
nada... Nicolau, sem perceber, se vê a brincar de Deus. Seu coração dispara e
imagens distantes retornam. Tudo volta ao que era, do jeito que nunca
aconteceu. Sua mãe o abraça com força, beija-o... seu pai diz que tudo acabará
bem, que todos serão felizes pra sempre... bolo de chocolate, canja de galinha,
doce de leite... O nunca e o pra sempre juntos...
2º movimento
- A alma da mamãe tá tomando banho...
- Você usa sabão?
- Não, meu querido, uso as lembranças.
Naquela manhã, Nicolau estava especialmente curioso. Tudo
era motivo de indagação. Por que o céu é em cima? Por que hoje não é sábado?
Por que estou chorando e não estou triste? Acabei de comer, mas ainda estou com
fome? Pra onde foi todo o mundo?
Com seu ouvido aguçado, recebia respostas de
perguntas que nem imaginava poder fazer. Às vezes se achava um super-herói...
enxergava a distância... Pensava que podia ter vários bolsinhos para colocar
tudo aquilo que chegava até ele. Depois, mais tarde, com calma, organizaria
cada pergunta junto de cada resposta. Desse modo entenderia tudo, e nada
ficaria sem solução, cutucando...
O
problema é que quando a curiosidade fazia cócegas, era prenúncio de confusão... Sábado, de
manhãzinha... todos ocupados, de um lado pro outro... Nicolau, na sala, ouviu
alguém sussurrando, contando um segredo. Paradinho, percebeu que era um código,
alguém marcando encontro secreto, bem escondido, bem longe dali, mas que de
repente ficou tão perto...
Ele podia sentir o que ainda não estava
preparado pra entender... prendeu a respiração e gritou: estátua.
3º movimento
- O almoço está na mesa... a comida vai
esfriar...
- Já vou - respondeu. Nicolau sabia que não podia deixar transparecer nada, nem uma gotinha de suor, nada. A partir dali, acabara de ingressar em uma missão secretíssima... E o pior: como um agente duplo. Precisava ser discreto e estabanado. Sério, mas brincalhão. Pensativo e falador. Atento e distraído... As coisas estavam ficando complicadas.
Os dias passaram... Sem informações,
contatos, nada. Um silêncio meio véspera de desgraça... por coincidência,
véspera de Natal. As crianças no colégio falavam sobre seus presentes, e o pequeno morria de
medo de seu futuro, logo depois daquela noite... depois daquela maldita
informação... maldita hora em que estava ali sem querer estar. Não adiantava
fugir, foi convocado... o trabalho era sério: ou aceitava ou aceitava. Tinha de
cumprir sua missão. Resolveu relaxar. Quando ouviu passos, cada vez mais
próximos, mais íntimos, chegou a fechar os olhinhos e tapar
os ouvidos. E pensou: “se não ouço e não vejo, não existe”. Infelizmente, quando
se trata de missão secreta, esses truques não funcionam.
- Ouça com bastante atenção. Eu te amo, vou
sentir muitas saudades, mas preciso ir embora. Você entendeu? Quer que eu
repita? Estou com pressa, mas posso esclarecer qualquer dúvida. Este é o momento
dos detalhes... Se quiser anotar alguma coisa, faça agora. Não sei quando nos
veremos nem sei se... Você entendeu?
Nicolau ficou tão atordoado que não conseguia
falar... “que missão é essa, meu Deus. Será que vou dar conta?”. Tinha que dar,
pois, quando percebeu, não havia mais ninguém ao seu lado.
No dia seguinte, os objetos, as pessoas, tudo
havia trocado de lugar.